quarta-feira, 13 de abril de 2011

A INFLUÊNCIA DA ESCRAVIDÃO E PRESENÇA NEGRA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE CARIOCA


INTRODUÇÃO
Gilberto Freyre nos admoesta e ensina ao afirmar:
"Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo".

O presente texto se constitui numa tentativa de seguimento da História Cultural, que como nos diz Roger Chartier: “tem por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” . Assim sendo, teremos como meta salientar a existência e o valor da influência que africanos e seus descendentes exerceram na formação daquilo que veio a caracterizar o estilo de ser e se relacionar do carioca, isto é, sua identidade.
É obvio que ser carioca não é apenas o resultado único e exclusivo da presença e influência negra nesta cidade, mas é impossível negar que tão grande contingente, presente de forma tão significativa em vertentes que vão da economia à arte, não tenha deixado profundas marcas na construção daquilo que podemos chamar de identidade carioca.
Também se faz necessário declarar a impossibilidade de sequer ter a pretensão de ser conclusivo nesse tema. Está claro que tal temática não apenas permite, mas também exige um aprofundamento quase infinito de variações de análise e perspectivas de pesquisa.
O período por nós analisado se dá entre 1850, data em que o regime escravista começa a dar seus passos finais, e 1930, início da “época de ouro” da música popular brasileira.
Como conceito de identidade adotaremos a definição de Manuel Castells, segundo a qual “identidade é o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” . Entenderemos então a identidade cultural como um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados que estabelece a comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade. Podendo, então, se compreender a constituição de uma identidade em manifestações que podem envolver um amplo número de situações que vão desde a fala até a participação em certos eventos.

A Presença Negra no Rio de janeiro
Segundo nos diz Boris Fausto é possível se estimar que entre 1550 e 1855 entraram em portos brasileiros 4 milhões de escravos . Onde boa parte desse contingente teve como destino o Rio de Janeiro e suas lavouras de café.
De acordo com o mesmo autor, no decênio da independência, o tráfico aumentou com relação ao período anterior. As estatísticas oficiais apresentam uma media anual de ingresso de escravos de 32700 no período 1811-1820 e de 43100, no período de 1821-1830.
A concentração da entrada de escravos pelos portos do sul da Bahia, com amplo destaque para o Rio de Janeiro, cresceu enormemente. Esses portos receberam 53% do total de escravos importados entre 1811 e 1820 e 69% do total entre 1821 e 1830. A maioria dos cativos foi enviada para as lavouras cafeeiras do Vale do Paraíba ou ficou no Rio de Janeiro.
Dos quatro censos realizados entre 1799 e 1849 é possível afirmar que a população da cidade representava, em 1799, 43376 pessoas, sendo 28390 livres e 14986 escravas. Já em 1821 a população quase duplicara para 79321 pessoas, sendo 43139 livres e 36182 escravas.
O Brasil é o café e o café é o negro. Frase comum nos círculos dominantes da primeira metade do século XIX. Ainda que não seja totalmente verdadeira, já que o Brasil não era só café assim como também não fora só açúcar, e que a economia cafeeira iria continuar mesmo sem o trabalho escravo. Tal frase é muitíssimo expressiva do quanto o negro se fazia presente, ainda que como simples instrumento de produção, na sociedade brasileira e principalmente na capital do império.
Também contribuiria para o acréscimo da população negra no Rio de Janeiro o tráfico interprovincial. Depois de anos de tráfico contínuo com a África, a Bahia liquidava sua população escrava. Dos quinhentos mil que teria pelo início do século XIX, em 1874 não restaram mais, de acordo com as estatísticas, que 173.639 escravos. A decadência do açúcar brasileiro frente à concorrência no mercado internacional e a progressiva importância econômica que assumia o café que se expande em municípios do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, faz com que grandes levas de negros sejam vendidas a preços crescentes para o Sul. As plantações cafeeiras haviam sido supridas no primeiro momento, no segundo quarto do século XIX, pelo excedente de escravos acumulado na região mineira. O esgotamento desta fonte, agravado pelo término do tráfico africano, diminui a oferta, subindo astronomicamente a procura e os preços “por peça”, já que inicialmente os fazendeiros não consideravam a possibilidade de mobilizar trabalhadores livres como uma alternativa.
Assim, o Rio de Janeiro, com sua cultura de café localizada principalmente no vale do Paraíba, seria um importante comprador, seguido por São Paulo, que se expandia e que no momento seguinte optaria por uma solução mais “moderna” atraindo o imigrante europeu, embora ainda oferecendo condições econômicas e sociais praticamente insustentáveis para o trabalhador rural na grande empresa cafeeira.
A província do Rio de Janeiro, de 119.141 escravos em 1844, no início da década de 1870 passa a contar com mais de trezentos mil, dos quais grande parte havia chegado da África através dos portos do Nordeste, muitos vindos de Salvador, podendo se imaginar que também sudaneses da Costa da Mina e do golfo de Benin foram vendidos para essas bandas.
Os negros vendidos em Minas Gerais enfrentavam enormes caminhadas, acompanhados pelos feitores montados na direção de suas novas senzalas no vale do Paraíba. As estradas de ferro que vão se instalando sob o comando dos engenheiros ingleses, símbolos do progresso, também curiosamente possibilitariam o trânsito de milhares de escravos. Muitos homens de dinheiro, afetados pelo estado de depressão por que passava a província da Bahia, passam a se valer dos altos lucros da venda de negros, enviando-os para o Sul por navio, sendo que somente entre os anos de 1872 e 1876 chegam ao Rio de Janeiro 25.711 escravos vindos do Norte e Nordeste.
A capital do império cresce. Desde a vinda da família real para o Brasil o Rio de Janeiro terá necessidade de ser civilizado e expandido. Ao assumir a posição de capital política, principal porto comercial, entreposto dos produtos industrializados internacionais e centro de uma florescente atividade industrial, como conseqüência direta surgirá uma vertiginosa expansão do crescimento comercial da cidade e uma sociedade ávida por maiores refinamentos, demandando um enorme provimento de mão-de-obra que excederá em muito a pequena oferta de trabalhadores livres ou brancos.
Dessa forma o negro não será mais apenas o trabalhador do campo, ou rachará a lenha ou irá buscar água. Agora, ele será também o mecânico, o operário e o artífice. As antigas e vis tarefas não serão abandonadas, somente se acrescentarão a elas os novos serviços decorrentes da realidade urbana. Dessa forma o negro será usado em todas as ocasiões e modos possíveis podendo cumprir a função de mordomo ou alfaiate até ser usado como carregador ou cumprindo as funções do cavalo. Assim, a grande concentração de escravos possibilita a utilização deles em todos os setores da vida urbana.
O crescimento da população escrava acompanha o crescimento da cidade. Ao ponto de, em 1821, algumas freguesias urbanas, a população escrava ultrapassar a livre.
Por todos esses dados acredito não ser exagero poder dizer-se do Rio de Janeiro o que já havia sido dito da Bahia em 1870:
"Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita imaginação tomá-la por capital africana, residência de poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e carrega é negro" (Robert Avé-Lallemant, Reise Durchnord-brasilien).


A Relação com o Trabalho
A partir da constatação da presença massiva de negros no Rio de Janeiro é possível o estabelecimento das relações sociais advindas dessa presença, bem como das sugestões e influências da mesma na formação de valores, princípios e até da própria identidade do citadino carioca. Uma das vertentes que podemos chamar de influenciadora e construtora dessa identidade e a relação que se estabelece entre o negro e o trabalho.
Em uma sociedade escravista não é difícil perceber e entender que os trabalhos manuais e braçais vão ser muito facilmente associados aos escravos. Logo, esse tipo de trabalho ao ser considerado “coisa de escravo” será também visto como depreciativo e aviltante. Marilene Rosa nos apresenta dois contos muitíssimo ilustrativos e curiosos dessa ideologia a partir de Debret e Ewbank. Em Debret está o registro que um dos seus vizinhos chegou em casa, certo dia, dignamente seguido por um negro cujo enorme cesto continha um lápis de cera para lacrar e duas penas. Ewbank relata que um jovem de boa família, de dezoito anos, foi convencido a honrar um importante estabelecimento comercial com seus serviços de escritório de firma. Certa vez, um dos sócios entregou-lhe um pacote não duas vezes maior do que uma carta e pediu-lhe que levasse a outra firma vizinha. O jovem olhou o pacote, olhou o comerciante; segurou o pacote entre o polegar e o indicador, tornou a olhar para o comerciante e o pacote, meditou um momento, saiu pela porta afora e depois de dar alguns passos, chamou um negro que atrás dele levou o pacote ao destinatário .
O trabalho manual será tão mal visto a ponto dos próprios escravos quererem dele se apartar uma vez que tal atividade era ao mesmo tempo aviltante e expressiva da própria condição de escravo. Dessa maneira junto com o anseio por liberdade e como sinal dela, estava a necessidade de afastamento dos trabalhos braçais.
A amplitude pela aversão a trabalhos manuais e braçais englobará toda a sociedade. Estar envolvido em tais labutas era sinal e expressão de grande miserabilidade. Para o homem livre era sinal de grande humilhação ser visto na prática de qualquer desses serviços, ainda que fosse carregar um mínimo embrulho. Assim em prol de se ter alguns status, era necessário ter um escravo que se ocupasse de tarefas que só a ele cabiam. Dessa forma, ter um escravo era o anseio de toda a população, mesmo dos menos abastados. Como expressão máxima dessa ideologia e da própria contradição do sistema é possível encontrar até escravos donos de escravos, como nos casos citados por Marilene Rosa:
"O caso de Estevão Jesus, liberto, ilustra essa situação, quando requereu, por um decreto, que seu antigo senhor lhe reembolsasse 173$400 réis pelo valor de um escravo que possuía no tempo de seu cativeiro. Exigia-se, além do preço do escravo, a quantia referente aos jornais de que o senhor havia usufruído. Outro exemplo pode ser encontrado nas irmandades de negros, todas possuidoras de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos: essas irmandades recebiam os escravos como doação ou pagamento de dívidas".
Não acredito ser exagero afirmar que tal ideologia se perpetuou até os nossos dias, onde, diferentemente de outras sociedades ocidentais, é sinal de status ter-se a disposição quem se preste aos serviços de lavadeira, passadeira, faxineira, acompanhante, pedreiro e até carregador de compras. E antes que alguém justifique que tal necessidade é uma marca da falta de tempo moderna, difícil será justificar a verdade de que não contar com quem se preste a tais serviços, continua a ser algo aviltante. Difícil também será não estabelecer a relação de tal prática a uma herança escravista e preconceituosa, ainda que tal relação não seja decisiva.
Outra vertente, além do preconceito, que merece destaque na relação com o trabalho, é a inaptidão cultural do escravo em se adaptar à lógica empreendedora do capitalismo. Vale ressaltar que tal inaptidão não se trata de uma inferioridade intelectual ou física, mas de verdadeiro choque cultural, como bem esclarece Roberto Moura ao analisar a situação do negro logo após a abolição no mercado de trabalho do Rio de Janeiro:
"O mercado capitalista, colocando os homens uns diante dos outros em termos unicamente do valor de seus bens e de sua força de trabalho, e assim posicionando-os socialmente, impõe uma nova lógica que de imediato não é absorvida nem utilizada em suas possibilidades pelos trabalhadores nacionais, vindos de outras tradições civilizatórias, de outras experiências. A teimosia de alguns em se ater ao mínimo para a subsistência. A ausência de uma ética da venda do trabalho e de uma motivação para a acumulação. Muitos não compreenderiam inicialmente a natureza essencial do trabalho “livre”, da mercantilização do trabalho, que separa este da pessoa do trabalhador; ou então visceralmente se opunham a essas concepções, o que atrasa entre nós o surgimento de uma consciência profissional em sua expressão ocidental moderna. O uso da competição e do conflito em relações contratuais se chocava com as tradições de lealdade do trabalhador nacional, situação que seria vivida de forma simetricamente oposta pelos antigos senhores, agora tornados patrões, que esperavam vinculações e obrigações de seus subordinados que de muito ultrapassavam as novas relações profissionais estabelecidas".

Diferente do imigrante europeu já proletarizado, e sendo alvo do preconceito eugênico, o ex-escravo e seus descendentes tendem à aceitação dos trabalhos menos técnicos, a uma marginalização que os prende à cozinha e a informalidade, ao afastamento geográfico, expressão da não inserção no mundo dos brancos. Tudo isso muito claramente marcado pela falta de perspectiva de ascensão na sociedade branca.
As marcas de uma relação trabalhista meramente pela subsistência, desprovida de caráter empreendedor e a falta de perspectiva e até de esperança de ascensão social, são ainda hoje perceptíveis nas camadas mais inferiores da sociedade carioca. Hoje, não só os afro-descendentes, mas também o retirante nordestino e todos aqueles que estão confinados à miséria e a espaços de marginalização, partilham a mesma herança de falta de horizontes, o que é muito claramente percebido, quando ouvimos alunas do ensino público fazerem a sombria previsão do seu futuro na seguinte frase: “o nosso futuro é limpar o chão e ‘dar’ para o patrão”.
Mais uma vez é possível reconhecer a relação da situação atual com a realidade vivida pelos ex-escravos já nos primeiro anos da abolição, principalmente quando evocamos a origem das áreas de marginalização e do subúrbio carioca. Ainda que mais uma vez não possamos atribuir ao passado do negro a total e definitiva responsabilidade pelo presente.
Ao estabelecermos as relações por hora aqui apresentadas que fique clara a nossa compreensão que tais relações não foram provocadas ou decorrentes do elemento Negro em si, mas das circunstâncias históricas por ele vividas numa sociedade de vicissitudes e heranças escravistas.

A Tendência ao Associativismo
É fato e claro, que a começar pelo tráfico negreiro, todo o sistema escravista foi eficiente em promover todo um processo de dispersão social e familiar do africano cativo. Diante de tal realidade se fez necessário promover a construção e a reinvenção de novos vínculos sociais adaptados à realidade da escravidão e dela derivados. O que é possível de se perceber nas modalidades e formas de habitação do Negro no espaço urbano.
Nos últimos anos do sistema escravista e no cenário urbano vão surgir dois fenômenos típicos da urbe e intensamente interligados: o escravo ao ganho; e as casas de cômodo ou cortiços.
O problema que a princípio mais irá preocupar as autoridades são os negros egressos do cativeiro, principalmente os que viviam “sobre si”, os escravos ao ganho. Tal condição dava ao escravo a possibilidade de mesmo enquanto cativo viver longe do seu senhor, manter-se por meios próprios, tendo de pagar uma quantia ao senhor ao fim de prazos pré-estabelecidos. Para o escravo era uma forma de poder gozar de razoável liberdade com a possibilidade de amealhar recursos para a compra de sua liberdade definitiva. Para o senhor, tal situação era uma maneira hábil de evitar os custos com o sustento do escravo e ainda tirar-lhe jornais mais elevados . Tal situação será muito bem apresentada pela literatura da época, tendo como principal expoente O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1890) , onde a personagem Bertoleza, uma negra que vivia “sobre si” e que pertencia a um velho cego de Juiz de Fora, a quem pagava de jornal vinte mil réis por mês, mas que apesar disso já possuía o suficiente para comprar a sua própria alforria, economias que eram tão substanciais que permitiram a João Romão, outro personagem da trama, dar início ao seu empreendimento de dono de cortiço.
Porém, não eram apenas os negros que viviam “sobre si” que se refugiavam nos cortiços, mas também os fugidos. O que é demonstrado pela carta publicada em 05 de maio de 1869 no Jornal do Commercio dirigida ao chefe de polícia da Corte, cujo teor consistia num pedido de busca em vários cortiços da Corte que estariam se transformando em asilo de escravos fugidos . Também uma carta do chefe de polícia da Corte endereçada aos vereadores da Câmara Municipal, datada de 19 de março de 1860, atesta a existência na cidade de um grande número de casas alugadas ou sublocadas a escravos, casas que, segundo o remetente, eram valhacouto de escravos fugidos .
Segundo Chalhoub, a multiplicação da permissão para “viver sobre si” acabou se tornando mais um forte fator de desagregação do sistema escravista na Corte. Chegando até a gerar processos promovidos por parte de tais escravos contra seus senhores, já que, se julgavam em condição de liberdade que muito diferia do conceito “ortodoxo” de cativeiro e assim sendo já que viviam uma liberdade de fato, sustentando a si próprios sem nenhuma dependência dos senhores, julgavam-se merecedores de uma liberdade de direito.
Neste contexto vai aclarando a idéia de que a alternativa mais viável para a vida na corte de negros fugidos, alforriados, ou livres em geral, nas últimas décadas da escravidão eram os cortiços. Daí, os exemplos são vários de escravos que viviam em cortiços, bem como de famílias de escravos que depois de libertos se reuniam em cortiços para ali viverem juntos. Nessas habitações os escravos também vão encontrar auxílio e solidariedade para a compra de suas alforrias. É também claro que misturar-se a população de um cortiço era um ótimo esconderijo em caso de fuga. O personagem Bertoleza de O Cortiço é mais uma vez ilustrativo dessa situação, uma vez que, enganada por João Romão e se sentindo liberta, viverá por muito tempo no cortiço sem enviar qualquer quantia ao seu senhor e sem que este soubesse do seu paradeiro.
A tendência ao associativismo que terá como palco o lugar de habitação era uma realidade vivida já na Bahia pelos migrantes negros que viriam mais tarde para o Rio de Janeiro, como atesta Roberto Moura:
"Os bairros populares se superlotam, os negros se juntam em casarões alugados, geralmente com os irmãos de nação. São os hábitos da vida comum que os protegeriam nesses duros anos de transição. Muitos pensam em voltar para a África, outros, aqui já nascidos, não saberiam mais para onde se dirigir num continente rasgado pelas disputas colonialistas. Talvez valesse mais a pena, muitos pensavam, tentar a sorte em outra cidade brasileira".
Mais uma vez o romance de Aluisio Azevedo é sinal e expressão da realidade ao descrever o cortiço como palco de uma dimensão de convívio social onde é muito tênue a divisão entre público e privado. Todos participam da vida de todos. Dores, graças, romances, disputas, camaradagens, necessidades diante da doença, tudo é compartilhado, não há segredos, a solidariedade é a marca da convivência. Mesmo havendo a presença de grupos étnicos diversos e moradores de origem européia, não há dúvida que é do núcleo de negros e mulatos que tudo se irradia, desde a prontidão em socorrer até a disposição e animação para os folguedos.
Ao comentar a obra de Aluísio Azevedo, José Murilo de Carvalho destaca o caráter associativo e solidário dos cortiços que existiam “como um pequena república com vida própria, leis próprias, detentora da inabalável lealdade de seus cidadãos, apesar do autoritarismo do proprietério”. “Ali se trabalhava, se divertia, se festejava, se fornicava e, principalmente, se falava da vida alheia e se brigava. Porém, à menor ameaça vinda de fora, todos esqueciam as brigas interna e cerravam fileiras contra o inimigo externo”.
Pode-se considerar os cortiços como um lugar de resistência à escravidão, o tempo dos cortiços na Corte foi também o tempo de intensificação das lutas dos negros pela liberdade, o que conforme Chalhoub tem relação com a histeria do poder público contra tais habitações e seus moradores . Mas não há como se negar que, sobretudo, as habitações coletivas constituíram ambiente expressivo do associativismo e da solidariedade, principalmente entre escravos e seus descendentes.
No início do século XX a favela como substituta do cortiço não altera a dinâmica dessas redes de socialização e solidariedade:
"Novas comunidades se formam, no morro de São Carlos e no da Mangueira, favelas se espalham por todos os morros do Centro e em sua volta, e na Zona Sul da cidade, ocupadas por gente que vinha de todas as partes, e que pouco a pouco ganharia unidade através de novas formas de organização saídas da atividade religiosa e dos grupos festeiros. As favelas cariocas, mitos e manchas da cidade. A proposta de “se civilizar” de um setor dominante da população, associada à sua necessidade de mão-de-obra barata para os objetivos e a manutenção “do progresso”, definia na prática uma nova ecologia social na cidade, um novo Rio de Janeiro subalterno, não mais o dos escravos, mas o das favelas e dos subúrbios que se expande em proporções inéditas, que se forma longe do relato dos livros e dos jornais, afastado e temido, visto como primitivo e vexatório. A cidade se reforma. A cidade se transforma. A cidade se transtorna. O Rio de Janeiro moderno".

Após a abolição e ainda nas primeiras décadas do século XX a migração de negros baianos para o Rio de Janeiro será também ao mesmo tempo fomentadora e expressiva dessa característica associativa.
O grupo baiano iria situar-se na parte da cidade onde a moradia era mais barata, na Saúde, perto do cais do porto, onde os homens, como trabalhadores braçais, buscam vagas na estiva. Com a brusca mudança no meio negro ocasionada pela Abolição, que extingue as organizações de nação ainda existentes no Rio de Janeiro, o grupo baiano seria uma nova liderança. A vivência de muitos como alforriados em Salvador, de onde trouxeram o aprendizado de ofícios urbanos, e às vezes algum dinheiro poupado, e a experiência de liderança de muitos de seus membros em candomblés, irmandades, nas juntas ou na organização de grupos festeiros, seriam a garantia do negro no Rio de Janeiro. Com os anos, a partir deles apareceriam as novas sínteses dessa cultura negra no Rio de Janeiro, uma das principais referências civilizatórias da cultura nacional moderna.
Com o passar dos anos essa tendência à associação e a solidariedade, marca de um grupo que luta pela sobrevivência numa cidade que se expande falta de estruturas que abriguem o seu crescimento, não será marca apenas de negros e ex-escravos, mas uma característica das camadas populares e qualidade distintiva e fomentadora do caráter acolhedor e simpático do carioca.


O Caráter Festivo
Segundo a valiosa avaliação de Gilberto Freyre o africano trazido para o Brasil sempre teve consigo a marca da extroversão, matéria fácil de ser comprovada a partir da comparação com o comportamento introvertido do índio e de exemplos de populações brasileiras de forte influência negróide, como a baiana, caracterizada por um comportamento alegre, sociável, expansivo e loquaz .
Desde os tempos da colônia é possível perceber o elemento negro contrastando com a figura melancólica do português. O que mais uma vez é muito bem explicitado no Romance o Cortiço, onde a faceira e festeira Rita Baiana se destaca e é valorizada diante da figura de sua rival portuguesa. Ainda nos tempos de engenhos, como nas plantações, nos serviços domésticos, nas bateções de roupas, cozinhando, pilando café, trazendo cargas e fardos, os negros sempre trabalharam embalados por suas canções.
De acordo com Gilberto Freyre os negros sempre trabalharam cantando, com seus cantos de xangô, ou de festa, ou de ninar crianças, encheram de alegria africana a vida brasileira.
Roberto Moura ao salientar a forte presença negra na Bahia ressalta a forte tendência dos Africanos de etnia banta, que para o Brasil foram trazidos em grande quantidade, como de tradição festeira . Não há dúvida que a presença negra no Brasil trouxe uma nova dinâmica a forma de ser da população, a alegria negra veio contrastar e contrabalançar com a introspecção indígena e a melancolia portuguesa, o que é verificável inclusive na nova forma de se festejar as datas litúrgicas e os dias de santo do catolicismo.
A partir do sincretismo e da astúcia os negros se apropriam do espaço público trazendo para as praças, ruas e avenidas através de um catolicismo que se populariza, toda uma expressão festiva própria do seu jeito de ser.
De acordo com Gilberto Freyre foi o negro quem deu alegria aos São joões de engenho, que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis. À sombra da Igreja Católica trouxe a alegria de seus cultos primitivos às festas populares do Brasil. Nas vésperas de Reis e depois no carnaval, com reis coroados, estandartes místicos e ranchos protegidos por animais, cantaram e dançaram exuberantes e expansivos.
Ainda, segundo Freyre, no carnaval de 1933, na Praça Onze, no Rio de Janeiro, ainda teríamos oportunidade de admirar esses ranchos totêmicos de negros .
As movimentações decorrentes da Abolição também são muito reveladoras dessa índole festiva dos negros que encenaram imensos festejos populares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte. À época da comemoração do aniversário do imperador, a dois de dezembro de 1888, onde uma turba de negros invadiu o paço imperial para prestar suas homenagens ao monarca . Segue-se ainda as evidências da presença negra na festa da Penha no ano da Abolição segundo um artigo de Raul Pompéia:
"Depois da refeição, vêm as danças e os cantos. Um delírio de sambas e fados, modinhas portuguesas, tiranas do Norte. Uma viola chocalha o compasso, um pandeiro acompanha, geme a sanfona, um negro esfrega uma faca no fundo do prato, e sorri negríssimo, um sorriso rasgado de dentes brancos e de ventura bestial. A roda fecha. No centro requebra-se a mulata e canta, afogada pela curiosidade sensual da roda. Depois da mulata dançam outros foliões dos dois sexos. Os circunstantes batem palmas, marcando a cadência e esquecem-se, quase a dançar também, olhando o saracoteio lento, ou as umbigadas desenfreadas, dos fadinhos de uns ou da caninha-verde de dois pares (..). Entretanto, transitam de permeio grupos carnavalescos mais valentes, romeiros, enroupados a fantasia, zabumbando o zé-pereira, bimbalhando ferrinhos, arranhando guitarras, guinchando sons impossíveis de requinta e gaita".

A colônia Baiana, no Rio de Janeiro fruto da diáspora baiana para essa cidade é a expressão maior de como o caráter festivo do negro vai ser de grande valor na afirmação e influência dos negros nessa cidade.
De maneira bastante próxima ao que acontece em Salvador onde há uma redefinição do calendário cristão num novo ciclo de festas populares, quando nos santos católicos seriam encontradas correspondências e identidades associadas aos orixás nagôs, homenageados não só em cerimônias privadas, mas, a partir de então, com toda exuberância na festa “católica”, nas ruas, nas praças, nos mercados e mesmo nas igrejas da cidade. Os cucumbis baianos reapareceriam no Rio de Janeiro anos depois, em ranchos negros onde se cantava e dançava música africana em procissões que atravessavam os bairros populares, só interrompidas pelas luzes da manhã.
Segundo Roberto Moura, mais do que em qualquer cidade brasileira, a diversificação da vida e o ritmo cosmopolita do Rio de Janeiro permitiriam que certos hábitos musicais dos negros se encontrassem com a música ocidental de feição popular. O maxixe e o seu sucessor, o samba, acharam terreno propício na Cidade Nova: festeiros baianos, músicos e compositores negros, em processo de profissionalização, e empresários da caótica vida noturna da cidade criariam as formas da canção popular carioca, antecedendo uma geração de compositores que, junto com burgueses de Vila Isabel, depois de 1930, fariam a “época de ouro” da música popular brasileira.
Com base nos dados acima mencionados e a herança musical, principalmente o samba, seguida da maior festa popular do Rio de Janeiro, o carnaval, são evidências do quanto o caráter festivo do negro influenciaram a formação da identidade carioca.


Conclusão
O presente texto não tem a pretensão de ser completo e nem conclusivo sobre a relação entre a escravidão e a presença negra na formação da identidade carioca. Acredito que há muito ainda para ser analisado e levantado nessa temática. Também é preciso reconhecer que ser carioca não se resume apenas a influência da escravidão e da presença negra. Com certeza outros vetores culturais contribuíram para a formação dessa identidade, no entanto não há como negar ou disfarçar a premente influência dos pontos aqui destacados bem como de muitos outros oriundos das várias tradições e expressões de origem africana e também conseqüentes da escravidão.



Bibliografia
AZEVEDO, Aluísio, O cortiço, São Paulo, Martin Claret, 2009.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura – o poder da identidade. Vol. 2. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1990.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975.

MOURA, Roberto. TIA CIATA e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.

ROSA, Marilene. Negro na Rua, a nova face da escravidão. São Paulo: 1988.

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